Como mencionei esse tema na aula de Brasil I, vai aí uma discussão um pouco mais sofisticada que o normal sobre o tema.
http://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/1174363-a-multiplicacao-das-cotas.shtml
hélio schwartsman
25/10/2012 - 03h01
A multiplicação das cotas
Não sou um entusiasta das cotas raciais, mas não chego a afirmar que adotá-las seja um crime que resultará na destruição da meritocracia. O assunto é complexo e eu já o abordei algumas vezes. Mas, agora que o sistema de reserva de postos está se espalhando por diversas áreas e atingindo porções significativas das vagas, acho que é hora de voltar à questão, tentando situá-la no debate filosófico. Para o que segue, utilizo-me principalmente do livro "Justiça: o Que É Fazer a Coisa Certa", de Michael Sandel, embora eu chegue a conclusões bastante diferentes das deste brilhante professor, que é um dos autores de que eu mais gosto de discordar.
Existem duas justificativas de peso para a adoção das cotas raciais. A primeira é que ela seria uma forma de reparar injustiças históricas. É preciso ser estatisticamente cego para não perceber que existe racismo no Brasil e historiograficamente ignorante para afirmar que a escravidão não teve nada a ver com isso. Uma compensação para os descendentes dos escravos na forma de cotas seria assim uma forma de fazer justiça.
O raciocínio tem seu apelo, mas apresenta alguns problemas. Em primeiro lugar há um grande descompasso entre o universo de prejudicados pela injustiça histórica original (negros escravizados) e o de beneficiados pela política reparatória (alguns de seus descendentes, em geral os mais dotados e que menos precisariam de ajuda). E vale lembrar que os que pagam a conta (o branco preterido no vestibular, por exemplo) tampouco coincidem com aqueles que, no passado, lucraram com a injúria primordial (mercadores e arregimentadores de escravos, grandes fazendeiros).
O argumento só para em pé se evocarmos a noção de responsabilidade coletiva, que é, a meu ver --e também no de Sandel--, bastante complicada. Nós temos a responsabilidade moral de reparar erros cometidos por nossos ancestrais ou, menos ainda, por gerações prévias com as quais compartilhamos umas poucas características triviais como a cor da pele?
Há também a questão da distância no tempo. Quando a conta por um crime é cobrada no espaço de uma ou duas gerações, ela ainda pode fazer algum sentido. Mas, à medida que passam os séculos a separar a ofensa original da reparação, o próprio objeto da queixa vai perdendo materialidade. Soaria meio ridículo se os berberes levassem à Itália a fatura pela destruição de Cartago pelos romanos (146 a.C.) ou se os descendentes dos jebuseus, se é que ainda os há, fossem a Israel cobrar uma indenização pelas perseguições promovidas por Josué antes do ano 1000 a.C..
A segunda justificativa para as cotas, a da promoção da diversidade, é mais interessante. O negro não deveria receber preferência para ser aceito numa universidade devido a algo que já tenha acontecido (o que inclui tanto a escravidão como as privações econômicas que afetam ainda hoje sua família), mas simplesmente porque essa é uma maneira de promover um fim socialmente justificável. A racionalidade da medida já não está no passado nem no indivíduo, mas no futuro e na coletividade.
Um corpo discente que reúna pessoas com as mais diversas experiências e histórias de vida é enriquecedor para todos. Um aluno aprenderia menos sobre o mundo se em sua sala existissem apenas pessoas socioeconomicamente iguais a eles.
De modo análogo, a sociedade de um modo mais geral ganha se membros de minorias discriminadas ocuparem postos-chave, o que inspiraria jovens do mesmo grupo a copiar-lhe os passos, dando início a um círculo virtuoso que contribui para o bem comum.
O problema com essa argumentação é que ela vem com um outro lado. Como o ingresso em universidades e empregos públicos têm vagas limitadas, caímos no que os economistas chamam de jogo de soma zero, ou seja, para alguém ganhar, outro precisa perder. E isso nos leva ao fulcro da questão. Com que critério as vagas devem ser alocadas? Nossa tendência quase intuitiva é dizer o mérito.
Mas o que é o mérito? Diferentes concepções filosóficas resultam em diferentes respostas. Para liberais e libertários como Robert Nozick a solução é relativamente simples: temos direito a tudo aquilo que as pessoas nos queiram dar voluntariamente. Em geral, o mercado traduz bem essas preferências difusas, mas, para dar mais concretude ao caso, façamos um experimento mental. Imaginemos que, em vez de comprar o ingresso para ir a um jogo de futebol, os torcedores depositem diretamente na conta de cada um de seus ídolos o valor que estão dispostos a pagar para assisti-los. Evidentemente, craques como Neymar ficariam com a parte do leão, enquanto atletas mais anônimos receberiam bem menos. Mas não importa, Neymar fez jus a seu quinhão, e qualquer tentativa de subtrair algo do que ele ganhou, incluindo alíquotas progressivas de imposto de renda, é algo indistinguível do roubo e até da escravidão, já que dinheiro e tempo são intercambiáveis. Sob essa visão, cotas são de fato um crime --e grave, podemos acrescentar.
Já um utilitarista, para o qual toda ação deve ser medida em termos do resultado líquido de utilidade que produz, as cotas são bem mais facilmente defensáveis. Méritos e virtudes são abstrações que podemos pular. Se colocar um negro na faculdade gera mais bem-estar para esse indivíduo e para a comunidade do que dor para a pessoa que foi preterida, então devemos dar-lhe a vaga sem pestanejar.
John Rawls tem uma visão mais sofisticada. E mais radical também. Para ele, "ninguém merece maiores capacidades naturais nem lugar privilegiado na sociedade". Direitos da nobreza são uma excrescência. Essa é a parte fácil de aceitar nestes nossos tempos republicanos. Um corolário mais problemático é o fim do direito de herança, que ainda é uma peça-chave para o bom funcionamento do capitalismo. O mais duro de engolir, contudo, é a implicação de que a própria habilidade futebolística de um Neymar, com a qual ele nasceu, também é um prêmio indevido. Atributos como força, inteligência e beleza também entram nessa categoria, já que são resultado da loteria genética e não de virtudes individuais, ainda que, em alguma medida, tanto o craque como o gênio tenham sabido desenvolver seus talentos naturais. Se é injusto discriminar alguém por causa da cor da pele, é injusto favorecer outrem porque teve a sorte de nascer com a qualidade certa na época certa.
É um pensamento decerto estimulante e ótimo para elaborar uma teoria da justiça. Receio, entretanto, que tenha pouco apelo prático, já que vai contra valores muito enraizados na nossa sociedade, que se acostumou a ver resultados obtidos (por mais que eles dependam do acaso) como a materialização das virtudes (ou vícios) do indivíduo. É isto, afinal, o que dizem as religiões (colherás aquilo que semeaste) e a ética do trabalho, que traduz o espírito do capitalismo.
Isso implica que, até prova em contrário, as discussões sobre cotas transitarão entre concepções liberais e utilitaristas, que muitas vezes catalogamos como de direita e de esquerda, respectivamente. E penso que ambas (e também a de Rawls) são impraticáveis se tomadas pelo valor de face.
O ultraliberalismo nos levaria a rejeitar não só cotas e ações afirmativas, mas toda e qualquer diferenciação entre cidadãos, aí incluído o imposto de renda progressivo, aposentadorias especiais e até programas de recuperação nas escolas (não podemos gastar mais com quem foi "preguiçoso"). Drogados e fumantes não teriam direito a atendimento médico, já que seus males resultam de suas próprias decisões.
Já a posição utilitarista leva a dilemas ainda mais escabrosos. O médico utilitarista estaria legitimado a matar o paciente saudável que entrou em seu consultório para, com seus órgãos, salvar a vida de cinco doentes que estavam na fila do transplante. No plano econômico a situação não é melhor. Numa sociedade sem nenhum tipo de desigualdade, nós provavelmente teríamos muito pouca produtividade e inovação. Paradoxalmente, a tentativa de deixar a maioria de nós em melhor situação nos lançaria a todos numa encrenca pior.
Só o que sobra, portanto, é velho radicalismo de centro, que nos obriga a procurar soluções bem dosadas para cada problema, incluindo as cotas. Se as coisas não saírem como imaginamos, ainda poderemos recuar e reformular.
De minha parte, eu evitaria lançar a carta racial, um conceito complicado que já provou ser capaz de despertar o que os homens têm de pior. Penso que podemos chegar mais ou menos aos mesmos resultados operando apenas com categorias de renda, que ainda têm a vantagem de ser mensuráveis e inapelavelmente objetivas. Em termos demográficos, ajudar aos mais pobres já significa ajudar proporcionalmente mais aos negros, já que o racismo apresenta sua fatura na forma de pobreza. A principal diferença é que não abandonaríamos os pobres de outras cores pelo caminho.
Hélio Schwartsman
Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve na versão impressa da Página A2 às terças, quartas, sextas, sábados e domingos e às quintas no site
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